Todas as militâncias que já fiz, por ranking de dificuldade
Em algumas, me aplaudem de pé, me chamam de gênio e pedem para tirar fotos juntos. Em outras, me chamam de burro e terraplanista. Até já jogaram cadeiras em mim e pedem minha prisão.
Aqui, proponho classificar, com ironia e sinceridade, os diferentes tipos de militância que experimentei ao longo da vida — desde aquelas que me renderam abraços e homenagens, até as que trouxeram censura, ameaças e agressões físicas. É uma espécie de ranking pessoal, mas também um retrato das reações da sociedade a certos temas.
Nível 1 – trabalho voluntário, onde todos te aplaudem e ainda te agradecem por isso.
Em 2018, um amigo, presidente de uma Organização não Governamental, me convidou para um trabalho voluntário. Ele queria que eu fizesse um vídeo documentário de umas ações da entidade que dirige. A pequena ONG, de Bragança Paulista, reforma casas de pessoas em situações precárias. Em um fim de semana, desde o amanhecer de sábado até a noite de domingo, mais de 100 pessoas fazem um mutirão. É gente levantando muro, carregando cimento, operando betoneira, gente arrumando telhado, colocando piso, instalando encanamento e vasos sanitários. Outros fazendo a parte elétrica. Fazem tudo de uma obra. Eles até fazem móveis com materiais recicláveis. Como resultado, dão uma vida digna para pessoas em situação sub-humana. A regra para ser elegível é simples: pessoas que não teriam como sair daquela situação por eles mesmos. Fazem três ou quatro reformas dessas por ano.
Peguei a câmera, meu equipamento de captação de áudio e fui filmar. Antes, fui ver os vídeos das ações anteriores dos voluntários. Fiquei constrangido e não consegui ver nenhum até o fim. Nesses registros, eles gostavam de evidenciar as pessoas recebendo as casas reformadas, emocionadas, agradecendo efusivamente. Ao ir documentar a ação, fui com o pensamento provocativo do utilitarismo de Stuart Mill, questionando se aquelas ações estavam sendo mais úteis para quem fazia do que para quem recebia. O saldo de felicidade parecia ser negativo: os beneficiados pareciam ser meros figurantes de um espetáculo de virtude.
Na ação dos voluntários que fui filmar, era uma família com três irmãos idosos e deficientes intelectuais. Eles moravam sozinhos numa casa de chão de terra que chovia dentro. Uma tristeza. Ao finalizar de documentar os voluntários trabalhando no sábado, primeiro dia, sentei em um barzinho para tomar um chope com eles. Eu só filmei. Eles estavam imundos, com restos de cimento, marcas de tinta e muita terra nas roupas. Já pensando na edição, perguntei o que queriam com o vídeo, se eram doações. “Já temos dinheiro para todas as obras do ano que vem todo”, um deles me respondeu. Perguntei se precisavam, portanto, de mais voluntários. “A gente chega a cortar, de tantos que se inscrevem”. Perguntei qual o motivo geral. “Registro. Uma lembrança”, responderam.
No dia seguinte, domingo e último dia da obra, voltei para filmar. Inverti o foco do que me incomodava. Eu queria documentar os voluntários: quem eles eram e quais suas motivações. Na hora da entrega da casa para os irmãos, os filmei apenas de costas, como meros coadjuvantes. Na edição, expliquei que a ONG não precisava de mais voluntários, contei que eles chegavam a cortar, de tantas pessoas que se inscreviam. Também não pedi doações. Expliquei também que o grupo não tinha como crescer, fazendo mais obras por ano, porque a preparação também dá muito trabalho organizacional e burocrático. Não são apenas os dois dias de ação. Embalei tudo isso em uma edição de 10 minutos e coloquei o documentário no ar. Ao finalizar o vídeo, coloquei uma frase de Eduardo Galeano, famoso escritor uruguaio: “muitas pessoas pequenas, em lugares pequenos, fazendo coisas pequenas, podem mudar o mundo".
Publiquei no Facebook. Explodiu. Apenas da cópia em meu perfil, foram mais de 290 mil compartilhamentos (como desde 2018 até hoje muita gente saiu do Facebook, a contagem atual está em 238 mil). É o vídeo de ONG mais assistido no mundo todo. Outras cópias tiveram mais 60 mil compartilhamentos, somando, no total, 350 mil. Deu mais audiência do que se tivesse sido transmitido na Globo, o principal canal de televisão do Brasil, em horário nobre. Eu nunca tinha visto um vídeo viralizar tanto. Apenas recentemente, vi alguém superar essa marca. Foi o jornalista Tucker Carlson, ex-apresentador da Fox News, no X (antigo twitter), em uma entrevista com Putin, o presidente da Rússia, no meio da guerra da Ucrânia. Para chegar nos neste número, contou com a ajuda na divulgação de Elon Musk, com 220 milhões de seguidores.
No documentário da ação, foram mais de 9 mil comentários. Cheguei a cansar de ler tantos elogios. A matemática das visualizações é interessante. Um a cada 15 brasileiros assistiu. Esse índice é ainda mais alto em regiões onde já havia internet de alta velocidade em 2018, como o sudeste e sul. Lembrando também que há sete anos atrás, menos gente tinha acesso à internet e menos smartphones eram capazes de exibir vídeos. Como resultado, pessoas de diversos lugares do Brasil se dirigiram à Bragança Paulista na obra seguinte com o objetivo de reproduzir o projeto em suas cidades. Nos meses subsequentes, oito filiais foram inauguradas no Brasil todo. Mesmo sem pedir, muitas doações encheram os cofres da instituição. Recebi aplausos e elogios infindáveis. Me chamaram de “gênio”. A minha conclusão? Sem dúvida alguma, fazer militância por trabalho voluntário é ultra fácil.
Nível 2 – militância pela inclusão: onde a emoção é garantida e ninguém discorda.
Em 2019, escrevi um roteiro de um curta-metragem de ficção. O filme retrata a história do personagem Deco, homem com deficiência intelectual que sonha jogar futebol no campinho de seu bairro, enfrentando a resistência da mãe idosa, que teme por sua segurança. A liberdade do personagem principal é restrita.
No fim do mesmo ano, comecei a juntar tudo que precisava para iniciar as gravações. Fizemos testes na cidade, em uma escola de teatro, para escalar os atores. Resolvemos todas as necessidades técnicas de câmeras, microfones e os locais onde iríamos gravar. Iniciamos as filmagens e todos estavam trabalhando de graça. Filmes de ficção realmente geram uma magia nas pessoas e diversos sempre querem participar. Já tínhamos gravado algumas diárias, sempre aos fins de semana, mas aí veio a pandemia e tudo precisou parar. Era o lockdown. Tínhamos idosos na equipe, exatamente o grupo de risco da COVID-19. Eu não queria me sentir culpado por qualquer hospitalização ou morte. A ideia ficou suspensa.
A pandemia passou. Em 2023, vi, em um anúncio na internet, uma câmera de cinema digital de primeira geração, com mais de 10 anos de uso. Uma câmera que, inclusive, já foi usada em produções de Hollywood. Foi uma das primeiras que fez Hollywood abandonar os filmes químicos. Estava com preço bem acessível. Ninguém mais usa essa câmera. É de operação complexa, toda manual e pesada. O operador realmente precisa de entender de fotografia com profundidade. A câmera sequer possui foco automático. Não serve para um profissional, por exemplo, que faz vídeos de eventos ou casamentos. Não é uma câmera nem 4k. Mas a imagem é cinematográfica. Serve exclusivamente para cinema. Seria bom recomeçar com outro patamar de qualidade. Comprei a câmera, animei todos novamente e voltamos a filmar.
É um curta-metragem. E um curta dá para levar quase como um hobby: filmando aos fins de semana. Deste modo, não atrapalha a vida cotidiana profissional das pessoas. Já tínhamos trabalhado dois ou três dias, filmando aos sábados e domingos, quando vi chamadas para uma lei de incentivo à cultura: a lei Paulo Gustavo, legislação motivada pela morte do famoso ator, aos 40 anos, de COVID-19. Era um incentivo para uma retomada do setor, interrompido durante a pandemia. Eu nunca tinha utilizado nenhuma lei de incentivo. Precisaria estudar.
Montei o projeto como precisava montar e segui com todas as burocracias. É complexo participar de leis de incentivo, principalmente pela primeira vez. Fomos aprovados e recebemos R$ 50 mil. Hoje, com o filme terminado, na conta final, 20 artistas receberam deste montante, mais oito prestadores de serviços. Ninguém, exatamente, ganhou dinheiro com isso, mas o conforto que trouxe é grande: ninguém gastou para fazer, todos colocaram um pouco de dinheiro no bolso em cada diária, e houve o conforto com transporte, águas e refeições. Cobriu com facilidade desde o lanche no set de filmagem até os pequenos custos de coisas que precisaram ser compradas para a execução da obra.
Eu não sou exatamente um militante pela inclusão. Para mim, era apenas um desafio cinematográfico: fazer personagens complexos, como um deficiente intelectual, e colocá-lo dialogando nas relações com outros personagens. Eu queria juntar tudo isso com uma boa edição e uma fotografia que capturasse sutilezas de olhares e expressões. Eu não posso falar muito do roteiro do filme aqui porque senão dou spoilers. Mas, no fim das contas, o filme acaba passando uma mensagem de como pequenos gestos do cotidiano fazem diferença nas vidas das pessoas.
Fechei o filme. É dinheiro público e na lei havia as contrapartidas. No projeto, indiquei que passaria em escolas públicas de Atibaia. Eu também queria saber as reações de desconhecidos. As pessoas se emocionaram ao assistir. Aplaudiram de pé. Fui elogiado efusivamente pela sensibilidade colocada na obra.
Animado, inscrevi o filme em festivais internacionais de cinema. Começamos a ser selecionados, primeiro na Ilha de Guadalupe, na França, no mais tradicional festival de lá. Depois fomos selecionados para um festival em Portugal, o FESTin - Festival de Cinema Itinerante da Língua Portuguesa. Este festival é patrocinado pelo Ministério das Relações Exteriores do Brasil e pela Presidência da República de Portugal. Ganhamos até passagem ida e volta para ir lá representar a obra. Depois foi selecionado para um festival na Áustria e mais um na França. Este segundo festival na França foi algo realmente notável, um grande passo. É o Festival du film court en plein air de Grenoble, o festival de curta-metragens mais antigo e tradicional do país. Entre 3900 inscrições do mundo todo, apenas 80 filmes foram selecionados. Há três anos nenhum filme brasileiro passava por este filtro. A boa notícia? O filme ainda é recente e ainda há um bom caminho no circuito de festivais, podendo participar de mais diversos.
Realmente, pouquíssimas pessoas conseguem fazer um filme de ficção de qualidade. Na sétima arte, são muitas áreas que é necessário ter o domínio para que fique bom, não uma caricatura de humor involuntário. Diante deste sucesso, me chamam de inteligente, agradecem. De novo, me chamaram de “gênio”. Conclusão? É fácil fazer militância pela inclusão.
Nível 3 – militância pela cultura: onde há críticas, mas ainda há diálogo.
O filme, que falei logo acima, foi feito via lei de incentivo à cultura. Não é difícil encontrar pessoas extremamente críticas ao uso de dinheiro público para isso. Nessa situação, normalmente defendo esses incentivos. É necessário. Um povo que não se vê, não se valoriza. Nosso país tem inúmeros problemas, mas a parte boa de nossa sociedade é realmente boa. Sem produção cultural nacional, viramos presa fácil para uma dominação cultural do exterior, com todos os brasileiros com síndrome de vira-latas, apenas valorizando o que é de fora.
Outro ponto a ser entendido é que a cultura brasileira é também soft power. Quando em qualquer lugar do mundo admiram nossa cultura, nosso cinema, nossas músicas, o Brasil, como um todo, é valorizado. O FestIn, que citei acima, é um festival de cinema patrocinado pelo Ministério das Relações Exteriores do Brasil. É patrocinado também pela presidência da república de Portugal. É entendido como uma ferramenta para estreitar relações internacionais. O próprio Itamaraty possui um departamento inteiro apenas com o objetivo de valorizar a cultura brasileira no exterior. Como resultado, gera simpatia com o Brasil, facilitando negócios, turismo e gera influência do país no exterior.
Tudo isso não significa que boa parte das críticas às leis de incentivo não estejam corretas. Sim, tem muita gente pegando dinheiro e não produzindo nada de presta. Contudo, as críticas devem ser feitas com o objetivo de aprimorar, melhorar as aprovações e as fiscalizações do uso do dinheiro público, direcionando as verbas com mais precisão, para quem realmente produz e traz retorno à sociedade como um todo. Obviamente, não se deve destruir todos os incentivos, concluo sempre.
Eu já defendi essas leis perante pessoas que são absolutamente contra. Contei meu caso: o quanto ganhamos para fazer o curta, para quantos artistas foram o dinheiro e como foi a divisão do montante. Expliquei que serviu para formar profissionais, abrir novos horizontes e serviu como uma escola para muitas pessoas. Alguns críticos acabaram concordando, outros não. Mas ninguém ficou violento na hora de criticar. É uma militância de dificuldade razoável.
Nível 4 –militância pela segurança e voo: onde você é ouvido, mas nem sempre levado a sério.
Eu cresci no meio da aviação. Meu avô era piloto. De todos os ramos que os aviões podem te levar, o que mais me chamou a atenção foi a acrobacia aérea. Fiz esse curso especializado e, na sequência, comecei a participar das competições. Ganhei quatro vezes seguidas o campeonato brasilerio de acrobacias aéreas na categoria esporte, a mais concorrida do Brasil. É a categoria limite dos aviões que existem para alugar, com cerca de 180 hps de potência. Portanto, é a categoria onde há mais pilotos. Muitas vezes, inclusive, vimos diversos pilotos de categorias ditas “superiores”, devido a algum fator, ao voltarem a participar da categoria esporte, sequer conseguirem pódio em competições.
Os campeonatos de acrobacia possuem um risco baixíssimo para os pilotos. Não é um campeonato para ver quem é mais maluco. Seria o equivalente a um xadrez aéreo, onde o piloto deve ir fazendo as manobras e encaixando seu avião em um “tabuleiro” no ar. A competição é chatíssima para o público em geral. Para começar, a “low line”, o mínimo de altura que o piloto pode voar, é bem alta, sem fumaça, e com uma imensa folga para casos de erros do competidor, sobrando muito espaço para recuperação. São avaliados ângulos, velocidades de rotação, posicionamentos. Um looping, por exemplo, é avaliado para saber se ele realmente ficou redondo e terminou sem ganhar ou perder altura.
Em competições de acrobacia, que ocorrem em diversos lugares do mundo com as mesmas regras, são raríssimos os acidentes. Só me lembro de um, há uns 20 anos atrás, onde houve um acidente fatal. Não foi um erro de pilotagem, mas um problema mecânico raro e grave: a asa de um avião se soltou. Foi na Inglaterra. O objetivo geral, além da competição, é gerar disciplina e conhecimento nos pilotos.
Pilotos que praticam acrobacias aéreas são pilotos melhores, comparados aos que não praticam essa modalidade. O piloto de acrobacias põe o avião em situações não usuais e retira o avião dessas situações. É a prática de qualquer voo. O conhecimento em aerodinâmica e habilidade de pilotagem fica extremamente refinado.
A partir do momento que você possui um bom currículo na acrobacia e uma boa quantidade de horas de voo nisso, há um passo além no ramo: os shows aéreos a baixa altura. Agora é com fumaça e com público. É a elite da elite da aviação, quando falamos em habilidade de pilotagem. No Brasil todo, temos uns 30 mil pilotos no total, contanto de todos os ramos. Autorizados a apresentar acrobacias aéreas a baixa altura são apenas uns 20 ou 30. Essa modalidade já envolve bem mais risco. É realmente perto do chão.
E afinal, onde está a militância? A partir do momento que você conhece a acrobacia, acaba vendo vídeos de acidentes com aeronaves e vê, claramente, falta de treinamento em pilotagem. Vamos aos números: segundo um levantamento da Boeing, 22% dos acidentes aeronáuticos são em operações de pouso e decolagem. Neste caso, o conhecimento de acrobacia não influencia em nada. Outros 22% dos acidentes são de colisão com o solo em voo controlado. É como bater numa montanha ou, na hora do pouso, bater antes da pista. Também, neste caso, o conhecimento de acrobacia não tem muita utilidade.
Mas 24% dos acidentes são decorrentes de “perda de controle em voo”, ou seja, o avião entra em uma situação não usual em que o piloto não sabe como voltar ao voo normal, terminando em acidente. E os conhecimentos em acrobacia reduzem isso brutalmente. De cabeça, é fácil lembrar de alguns acidentes famosos e recentes no Brasil envolvendo perda de controle em voo. O primeiro é o Airfrance 447, que caiu perto de Fernando de Noronha, em 2009. O avião foi perdendo altura rapidamente depois de um estol até bater no bar.
O outro é o acidente da Passaredo, em 2024, que caiu em parafuso, em Vinhedo, no Interior de São Paulo. Nos dois casos, há circunstâncias que levaram à perda de controle em voo, mas conhecimento em acrobacia poderia ter, no mínimo, ajudado. No caso do acidente da Airfrance, os pilotos, em nenhum momento, buscaram baixar o nariz para o avião atingir velocidade de sustentação novamente. No caso da Passaredo, como podemos constatar pelas imagens, enquanto o avião estava em parafuso, os dois motores estavam a pleno, o contrário do que é o procedimento para sair de parafusos.
Acaba uma apresentação de show aéreo ou campeonato de acrobacia e alguém coloca um microfone na sua frente. Invariavelmente, você começa a defender que todos os pilotos façam pelo menos algumas horas de entradas e saídas de parafusos, para que entendam, na prática, como é. Não é um chute, há até um estudo da NASA concluindo pela eficácia deste treinamento, onde explicam que apenas os treinamentos em simuladores de voo não são suficientes.
Do público de show aéreo, quando você desce do avião, as pessoas pedem para tirar fotos juntos. Pais pedem para tirar fotos com os filhos. Dos pilotos, há admiração pelo voo, mas realmente poucos aceitam as dicas de que façam esses cursos. Muitos acreditam que realmente sabem o que precisa ser feito apenas pela teoria e não consideram o curso essencial. É, portanto, uma militância de dificuldade razoável. Mas ninguém fica agressivo quando indico os cursos.
Essa é a militância pela segurança de voo para a comunidade aeronáutica inteira. Há uma outra, interna, apenas dentro da comunidade de pilotos acrobáticos de show aéreo. Neste caso, há uma regra simples: o show aéreo deve fazer o público leigo roer as unhas, mas não pode deixar os pares, ou seja, os outros pilotos de acrobacia, aflitos. Quando isso acontece, os pilotos se reúnem para pedir menos “ousadia” de quem está voando próximo dos limites. Isso já aconteceu comigo. Fui falar para um amigo que seu voo estava perigoso. Perdi o amigo duas vezes. Ele brigou comigo por discordar que era perigoso e, meses depois, faleceu em um acidente. Neste ponto específico, é uma militância bem difícil.
Nível 5 – políticas sociais de esquerda: onde argumentos não bastam, e ideologias cegam.
“Bolsa vagabundo”, era assim que as pessoas se referiam ao Bolsa Família, que tirou uma quantidade imensa de pessoas da pobreza. “Não pode dar o peixe, tem que ensinar a pescar”, era outra frase de senso comum contra o programa social. Uma boa parte das pessoas que votaram em Serra em 2010, em Aécio em 2014 e em Bolsonaro em 2018, tinha ódio completo desse programa. A esperança era que seu candidato, depois que vencesse, acabaria com tudo.
Já eu, ao contrário, sempre achei que isso precisava ser defendido com unhas e dentes. Na minha opinião, absolutamente toda criança que nasce precisa ser bem alimentada. Não olho para os pais, se são trabalhadores ou realmente vagabundos. Não quero saber se a mãe é drogada, se o pai está preso. Uma criança nasceu, não importa onde e de quem, é para ter comida, ser bem alimentada. É o que defendo.
Além dessas frases contra o programa, vinham outras: “as pessoas não querem trabalhar”, explicavam os críticos sobre os que recebiam o benefício. Mas peraí, pare para pensar comigo. Na situação da pessoa se negar a trabalhar e preferir a miséria do bolsa família, qual é o emprego oferecido? O programa tem isso também. Retira as pessoas de trabalhos degradantes. Dá a oportunidade de falarem um “não” para empregos abusivos. Ou seja, funciona como um gatilho contra abusos do capitalismo selvagem.
Bem, em 2018, Bolsonaro ganhou a eleição e assumiu a Presidência da República. Ele não atacou o programa. Fez o contrário, se aproveitou dele e aumentou os valores. O discurso de todas as pessoas que ignoravam os argumentos a favor do bolsa família, e insistiam em ser contra, mudou: deixaram de ser contra. É a incoerência dos eleitores de direita que não estão nem aí com o que disseram no passado próximo (isso não é exclusividade de eleitores da direita. Os de esquerda também são assim, mas em outros assuntos). Antes da direita chegar ao poder, era difícil essa militância. Muita gente fazia questão de não entender a importância do programa. Argumentos não adiantavam, para nada.
Nível 6 – militância contra o neoliberalismo: onde você fala, e a resposta é um meme.
“Estado mínimo” é a ideologia. O que pregam é liberar ao máximo os mercados, com a mínima ou nenhuma interferência do estado. Tudo teve origem na Escola de Chicago. Prometem o crescimento econômico e prosperidade para todos através disso. Há um slogan: “privatiza tudo”. O ideólogo? Milton Friedman, um economista nortemaericano vencedor do Nobel que não teve o mínimo pudor na hora de colocar seu experimento em prática na cruel ditadura de Pinochet, no Chile. E realmente, para se implantar algo que ajuda o andar de cima e esmaga o andar debaixo, sobram apenas duas opções: lavagem cerebral ou ditadura. Friedman escolheu abraçar Pinochet.
Mas apesar das promessas, não funciona. Vendem tudo que é da nação à preço de banana para grandes capitalistas estrangeiros. A nação inteira torna-se escrava dos grandes capitalistas internacionais e perde capacidade de manobra. A ideologia do estado mínimo é vendida por estados fortes para que os outros estados sejam facilmente dominados. Afinal, na “meca” do neoliberalismo, eles não privatizam a AMTRACK, empresa estatal de trens dos EUA, considerada estratégica, por exemplo. Mas exportam a ideologia de que os outros países devem privatizar tudo.
A gente explica cuidadosamente tudo isso. Citamos uma das maiores intelectuais contra o neoliberalismo, Naomi Klein, e indicamos seu documentário. As pessoas assistem, não sabem como refutar argumentação mas repetem como papagaios: “privatiza tudo”.
Quando vemos pessoas da direita atual comprando essa ideologia, chegamos a elogiar a política econômica da ditadura militar (1964-1985). Naquela época, era um governo de direita, mas que repudiava essa ideologia. Não queriam dar tudo para capitalistas do exterior. Eles cometeram absurdos? Sim, quando falamos em liberdades individuais, censura, torturas, prisões, mortes, supressão do estado democrático de direito e corrupção sem investigações, mas temos que assumir: os militares tinham um projeto de nação. Eles fortaleciam as grandes empresas brasileiras. Um exemplo simples? Criaram a Embraer. Os “liberais” gostam de falar que ela foi pra frente depois que foi privatizada. Mas ela sequer existiria se não tivesse sido estatal. Hoje está aí. É a terceira maior fábrica de aviões do mundo.
Bem, não importa o quanto se argumente. Termina com “privatiza tudo”. É para ser contra. É como time de futebol. É uma militância difícil porque estamos lidando com um dos maiores poderes do mundo, com apoio de uma parte da população alienada que não deseja entender. Na sequência, os que não querem entender, xingam de “comunista” para se colocarem numa tribo.
Nível 7 – segurança de medicamentos: onde a verdade é crime, e o mensageiro é linchado.
Estamos em julho de 2025. Depois de cinco anos de pandemia e uma somatória de fatos, alguns contrastes ficaram evidentes. Para ilustrar, vamos direto para os mais marcantes. O primeiro: lembra quando na CPI da COVID disseram que discutir cloroquina é semelhante a “escolher que borda da terra plana a gente vai pular”? O assunto virou piada. “Cloroquina” virou sinônimo de gente maluca, virou samba e quadros de humor engraçados.
Diante disso, vamos abrir o site da Universidade de Oxford, o cartão postal da Inglaterra. É a universidade que em qualquer ranking sério do mundo está listada como a primeira, segunda ou terceira mais importante do planeta. Rivaliza, trocando de posições ano a ano, com Harvard, Yale ou e MIT. Pois bem, está lá, publicado: “Hidroxicloroquina oferece prevenção moderada da COVID-19, mostra grande ensaio clínico”, diz a notícia.
Coisas que você deve prestar atenção para não ter conversas paralelas. É uma notícia no próprio site da Universidade de Oxford citando o estudo. Ou seja, Oxford chancela o resultado. Não há aquela conversinha mole de “não é da universidade, mas de pesquisadores da universidade". Além disso, o estudo, revisado por pares e publicado em um periódico médico, é assinado por mais de 80 cientistas. Para reforçar, colocaram, na notícia, uma foto de todos os pesquisadores. Mais um detalhe importante: entre os que assinam o estudo, está o professor Sir Nick White, o maior especialista do mundo em doenças tropicais. Repare que o título não deixa mais em dúvidas, diz que é eficaz e pronto. Isso ocorre porque as evidências chegaram no nível meta-análise de estudos “padrão ouro”. Ou seja, o nível máximo. Não há mais para onde empurrar as traves do gol. Querem uma comparação simples? 89% dos medicamentos indicados corriqueiramente na cardiologia não possuem esse nível de evidência.
Agora pense no ataque global a todos que ousaram falar deste assunto quando as evidências eram boas, no caminho de se tornar máxima. Foram considerados loucos, terraplanistas, negacionistas, criminosos da saúde pública. Pessoas foram processadas, canceladas. E agora está aí, nível máximo, cientificamente comprovado. De qualquer forma, alguns questionamentos sobre esse estudo perduram. Dois, para ser mais preciso. O primeiro é: por que Oxford levou mais de 800 dias para publicar estes resultados? Segundo questionamento: por que utilizaram o endpoint de soroconversão em vez COVID sintomática? Nem nas vacinas utilizaram soroconversão. Explico facilmente. Prepare-se para cair da cadeira ao ler isso. Alteraram o endpoint no meio do estudo para o resultado dar “moderado” em vez de alto e o choque não ser tão grande.
Agora, ainda diante deste contraste, vamos para algo óbvio. Sabem que essa notícia publicada no site de Oxford tem muito mais poder de impacto do que uma reportagem de 10 minutos no Fantástico, certo? Pois bem, a verdade está na cara de todo mundo. Sabotaram um tratamento eficaz durante a maior pandemia em 100 anos, que parou o mundo e matou milhões. Simples assim.
Esse foi só o primeiro contraste evidente. Vamos para o segundo. Agora vamos falar de vacinas, o assunto tabu que mexe com emoções. O contraste? O Brasil é o único país do mundo obrigando vacinas COVID em crianças de 6 meses a 5 anos. E enquanto o Brasil obriga, países como Alemanha, Japão, Reino Unido, Dinamarca, Suécia, Suíça, exemplos de respeito às suas populações, sequer recomendam para crianças saudáveis. Apenas para uma ou outra, muito doente, depois de um exame médico rigoroso. E mesmo nesta situação, esses países não obrigam, é apenas uma recomendação.
O motivo de nenhum país obrigar e países importantes sequer recomendarem para crianças? Não, não é porque o mundo inteiro é antivax e o apenas o Brasil está certo. É uma aberração mesmo. A explicação é simples. Crianças não são do grupo de risco e, portanto, os riscos superam os benefícios. Não, Alemanha, Reino Unido, Dinamarca, Japão, entre outros, não são displicentes com a saúde de suas crianças. É o Brasil que virou desova de produtos farmacêuticos rejeitados pelo mundo todo mesmo.
Mesmo diante desses contrastes contundentes, falar sobre essas coisas não gera reflexões. No segundo ponto, da vacinação forçada, os fatos acima não servem para nada. Um dia, fazendo um teste, contei essa comparação entre países para uma pessoa. Eu queria saber como alguém despreocupado, sem estar prestando atenção no assunto, reagiria. De supetão, ele falou um slogan: “Mas o Brasil é exemplo de vacinação para o mundo”. Nada mais que um slogan. Com isso, ele concluiu que o mundo todo está errado e apenas o Brasil está certo. Pode?
Esses dois itens são os contrastes máximos gerados pela pandemia, onde não sobram argumentos. O interessante de tudo isso é que nunca fui militante da área. Caí de paraquedas no assunto. Apenas comecei a estudar a pandemia para tomar as melhores decisões e sair vivo dela. Além disso, queria orientar pessoas próximas, parentes e amigos. O momento era tenso: o mundo estava parado e o medo reinava.
Foi quando me deparei com algo absolutamente fascinante. A capacidade da indústria farmacêutica em conquistar corações e mentes, mesmo com um histórico assombroso de fraudes, enganos, acúmulo gigantesco de mortes e pessoas lesadas. E o mais interessante, este encantamento ocorre em todos os níveis educacionais. Ocorre também em todos os lados políticos. É, geralmente, de modo apaixonado.
Não deixa de ser uma experiência interessante. Ao falar de inclusão, voluntariado, segurança de voo, sou um gênio. Ao falar de vacinas, já me jogaram uma cadeira em um bar. Ao produzir cinema, o governo me presenteou com uma passagem de ida e volta para Portugal. Ao afirmar que é uma aberração o Brasil ser o único país do mundo obrigando crianças a se vacinarem da COVID, o mesmo governo gasta dinheiro para me colocar numa lista negra de “desinformação”.
Acha que eles, relatório onde me colocam na lista negra, tentaram argumentar para tentar explicar o motivo do Brasil ser o único? Não. Olha o que dizem da situação bizarra. Sou o culpado de “alegações que inferiorizam a política de saúde brasileira”. Afinal, coloco tudo em um “contexto comparativo diante de postagens que afirmam que o Brasil está na contramão das nações ‘desenvolvidas’”. Sim, enfiaram um “desenvolvidas”, entre aspas, para Japão, Alemanha, Reino Unido, com o objetivo de dizer que é contrário. Um ufanismo delirante. Certamente, para quem escreveu este relatório, esses países são republiquetas de bananas!
Quando compartilharam o documentário de trabalhos voluntários, recebi oito mil elogios. Mas ao comentar em um grupo de whatsapp se valia a pena ou não tomar vacina COVID, um amigo de longa data prometeu quebrar meus dentes. Ele queria me calar, afinal, algumas pessoas no grupo estavam interessadas em minhas observações.
Eu puxei os dados oficiais do SUS e fiz esse gráfico. Internações por infarto agudo do miocárdio em menores de 50 anos, no Brasil todo. Fiz uma linha de tendência. De 2021 para 2022, explodiu e não está regredindo. Para mim, nenhuma surpresa: no estudo original da Pfizer, “padrão ouro”, onde 22 mil tomou vacina e 22 mil tomou placebo, após 6 meses, quando fechou a conta de mortos por todas as causas, tinham 22 mortos na vacina e 16 no placebo. Quando foi para toda a população, onde mais de 90% foi vacinado, deu isso que está no gráfico. Publiquei esses números em minhas redes sociais. O resultado?
“O que eu puder fazer pra fuder sua carreira eu vou fazer. E pode esperar isso”, recebi por inbox no Instagram, logo em seguida. Em outra situação, numa mesa de bar, perguntaram se acredito que a terra é plana. Afinal, criticar grandes corporações imperialistas anunciando produtos porcaria como se fossem incrivelmente excelentes e indispensáveis, só pode ser algo da cabeça de quem acredita em teorias de conspiração como a terra ser plana, não uma mera técnica recomendada em todos os livros de marketing do mundo.
“Isso não é da sua conta”, foi o que respondeu uma namorada na época, formada pela USP, mestre e doutora no exterior, com diversas publicações sobre proteínas, quando perguntei se ela iria tomar a dose de reforço das vacinas COVID. Não foi apenas uma frase dita. Foi acompanhada de uma subida de tom.
Nas redes, pedem minha censura. Já pediram minha prisão. “Vagabundo safado”. “Sua família deveria te internar”. É engraçado. Ao mesmo tempo que elogiam, se emocionam, aplaudem de pé, atores agradecem por tê-los dado a oportunidade de atuarem, ao mesmo tempo que elogiam minha luta pela conscientização da segurança de voo e a sensibilidade pela conscientização da inclusão, querem quebrar meus dentes. Ao fazer um documentário viral sobre trabalho voluntário, milhares adicionaram no facebook como amigo. Ao escrever, no próprio Facebook, as incoerências do momento atual, diversos amigos bloqueraram.
Tudo isso faz essa militância ser nível de dificuldade hard. O ultra difícil. Mas confesso que o difícil que é legal. Além do que, é fascinante ver a reação das pessoas, da sociedade, como todos se comportam. Certamente, a pandemia foi o melhor jeito de entender o mundo. Entendi quem realmente manda no planeta. E como manda.